Uma ave e um organismo vivo que se hospeda em outros. Duas metáforas biológicas para a crítica social. De que tratam? Da sublime inocência da reprodução do modo mais culpado de vida. Por quê? Porque a natureza é o melhor arquétipo da inocência.
Esses dois filmes representam o holocausto da inocência ao deus Mamom ou, dá no mesmo, ao modo capitalista de reprodução social contemporâneo. Asinus dei.
Em Bacurau, temos uma pequena comunidade rural no interior de Pernambuco. Não é preciso dizer mais nada, os estereótipos vêm. Pensa-se num povo humilde, ignorante, inocente. Mas imediatamente vemos que eles manejam celulares, tablets, computadores (provavelmente quase tudo pilhado por Pacote), estão atentos às covardias que os cercam e vivem numa espécie de autogestão não só material, mas moral.
Do outro lado, temos os urbanos, os ricos, os espertos que tramam contra a pobre comunidade. Mas a esperteza é contrastada com uma grande estupidez que talvez acompanhe a posição social: a total negligência com que menosprezam a comunidade e o bizarro plano de extermínio geral. É como se a comunidade sequer existisse para eles – aliás, ela não está no mapa da internet quando o professor quer mostra-la aos alunos.
De qualquer forma, tanto a comunidade é utopicamente superestimada, quanto os grupos ricos que querem extermina-la são ridiculamente caricaturados. Os lados estão hiperbolicamente invertidos. A distopia de que tanto se fala quando se fala desse filme não está no tempo (a despeito da indicação “daqui a alguns anos…” no início do filme), está no método. Há alguma coisa que não é somente maldade nos vilões ou justiça nos heróis. E isso é evidente, apesar de poucas críticas terem abordado. Não há motivos para que os mercenários dizimem o povo, nem para que o prefeito busque solução tão radical. É tudo muito gratuito, não-intencional, as motivações pertencem a um mundo de fantasia – o que não quer dizer que não existam! Por outro lado, lembramos o povo assistindo aos crimes de Pacote na televisão com a maior naturalidade e no final registrando com seus celulares o resultado grotesco da desforra.
De ambos os lados reina a banalidade do mal e uma perturbadora inocência que os une na reprodução desse modo banal de vida ao compartilharem o consumo de gadgets e armamentos. E se a história nos lança de volta a certa dinâmica da natureza, matar ou morrer, caberia uma leve correção ao conceito de Hanna Arendt: a banalidade já é o mal. Desculpem-me, esse filme não é sobre resistência. É sobre resiliência, outra metáfora biológica, seja resiliência do ecossistema, seja da psique; é sobre homeostase, normalização, banalização, adaptação, conformismo, sobrevivência, etc. Mas por isso mesmo é um filme indispensável e didático para a verdadeira resistência e para a luta efetiva. É preciso filtrar seriamente a salada de temas polêmicos que o filme parasita – gênero, feminismo, etnocentrismo ou colonialismo, classe… – e escapar da confusão gerada por essa abordagem ansiosa e nervosa que infelizmente contamina as lutas atualmente e da qual Bacurau é apenas sintoma.
Em Parasita, as coisas são infinitamente mais sutis, isso sim é um filme trágico. Mas também aí a distopia é um método de deslocamento da realidade, levando-a a beira do absurdo, à beira da inversão. Novamente os pobres não são meros coitadinhos inocentes. Eles se especializam em rotinas técnicas de imitação/repetição (montam caixas de pizza, mas poderiam estar consertando patinetes), mas são incrivelmente talentosos a ponto de representar papéis que lhes são diametralmente opostos. Dada hora eles ensaiam em casa a maneira certa de enunciar uma frase de forma que o patrão rico não suspeitasse da farsa.
Os ricos são desmedidamente ingênuos, aceitam qualquer coisa sem questionar: o símbolo é a patroa desprezando o diploma que o novo tutor apresenta depois de tanto trabalho para falsifica-lo. E aí vem o tema do filme: quem parasita quem? São os pobres que se infiltram na vida dos ricos para realmente fingir essa vida? São os ricos que aparentemente não fazem nada além de consumir e jogar fora, trocando funcionários como se troca lençol? Essa relação de parasitismo vai de um lado para o outro o tempo todo indistintamente até a peripécia e logo em seguida o reconhecimento (anagnorisis) geral da lógica parasitária, lógica inclusive espacial (micro e macropolítica), pois o bunker parasita a casa, a casa é parasitada por sucessivas famílias, os EUA parasitam a Coréia do Sul, etc. e vice-versa.
E o que faz Parasita não ser um filme sobre resiliência, mas sim sobre resistência, é que em última análise a ambivalência do parasitismo não opera uma síntese: o cheiro não deixa. O cheiro é oracular do início ao fim, quase um “conhece-te a ti mesmo”. Ora, uma das relações possíveis com o oráculo é a tipicamente trágica, a de Édipo, a de Creonte, a do pai da família farsante, a de milhares outros. O cheiro simboliza finalmente aquele resto de natureza que não se adapta ao jogo de adaptações e troca de máscaras, o resto para sempre incompatível com o modo de reprodução fetichista que conseguiu sim transformar grande parte da natureza gratuita inocente em mercadoria precificada culpada.
No final trágico de Parasita, há um delírio de esperança extremamente deprimente. No final cômico de Bacurau, temos um “charivari” light misturado com “festa do asno”. O charivari é uma punição típica no mundo medieval em que se montava o condenado num burro e o submetia a uma procissão de zombaria e linchamento sonoro (do que hoje só sobrou o panelaço…) que não raro descambava em agressões e morte. A “festa do asno” era um ofício promovido pelo baixo clero da Igreja medieval que parodiava episódios bíblicos: coroava-se e adorava-se o asno, faziam-no celebrar missa e todos os participantes relinchavam como ele ao longo do rito que também frequentemente era sucedido por mais libertinagens, às vezes violentas.
Para desgosto de Bakhtin, um dos maiores estudiosos das festas anômicas medievais, tais manifestações podem ter sido muito menos subversivas do que estabilizadoras da ordem. Na economia do poder, as descargas populares tem um papel importantíssimo, e velhíssimo (vide o “pão e circo” romano). Ainda que o charivari e a “festa do asno” (muito similar à “festa dos inocentes”, na qual basicamente o asno era substituído por uma criancinha) aparentemente tenham sentidos diferentes é evidente que ambas divertem, distraem a sociedade, e o que parece um descarregamento temporário é simplesmente um entorpecimento temporário.
O burro, nosso camelo sertanejo, carrega sem reclamar tudo que lhe amarram nas costas. Talvez o conceito de burrice advenha dessa complacência asinina. O asno diz “sim” para tudo, afirma Nietzsche comparando o som do relincho “i-a” ao “ja”, “sim” em alemão. Mas o simbolismo do burro também é o da inocência. Assim, o burro desculpa a burrice desde que se possa rir, gozar dela e se constitui o verdadeiro ideal de uma identificação simbólica (Lacan) geral, a mais desengajada e pervertida possível. A figura do burro é especular para todo um modo de reprodução social contemporâneo. No final de Bacurau, todos somos convidados a colocar o chapéu de burro; as ameaças do nazi e do prefeito são deixadas num estranho vácuo.
Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche pergunta: pode um burro ser trágico? A resposta é sim, se ele estiver destinado a sucumbir sob uma carga que não pode abandonar, e completa ironicamente: “o caso do filósofo”. Mas o burro que sobrevive justamente porque troca de carga “à vontade” não é um burro trágico, é um burro cínico ou brechtiano.
Sobre a ração dada aos bacuranos pelo pajé do povoado, talvez tenham pretendido fazer uma defesa da diversidade cultural, dos saberes ancestrais contra a ameaça de um capitalismo monopolista. Mas que lugar sobra para a magia se eles “importam” vacina (seria roubada também?), estão tecnologicamente integrados, parecem ser bastante céticos e até fecharam a Igreja? Se ao menos a raçãozinha fizesse efeito na gringa baleada… Essa contradição só pode se sustentar no modo parasita ou cínico de reprodução social. E se for assim, mais uma vez o filme é acidentalmente válido, porque hoje muitos grupos seguem afobados uma cartilha de resistência baseada na ostentação de práticas e signos privativos, parasitando-os a fim de se inserirem no mesmo modo capitalista que fingem desafiar.
Falar da ração de Bacurau implica falar da pedra de Parasita, promessa de prosperidade transformada em arma de morte. Ela lembra o fogo do mito de Prometeu, cujo domínio possibilita o desenvolvimento humano e ao mesmo tempo cobra um alto preço por isso, a saber, a esperança da caixa de Pandora que é da mesma ordem do suplício em loop de Prometeu, uma constante ilusão que inocenta as culpas daquele desenvolvimento e alimenta a leviana esperança que ele se endireite. Ora, os dois filmes homenageiam a engenhosidade humana na qual se deposita a esperança do mundo. Esperança corrupta que em Bacurau parece douradamente condenada à forma do parasitismo e da guerrilha, como se isso fosse sustentável…
Esperança também corrupta em Parasita: a princípio, com realismo, fadada à frustração, mas em seguida corrigida cinicamente (twisted) no delírio final para a forma convencional e “honesta” de esperança, assentada no valor e na dignidade do trabalho, na meritocracia do empreendedorismo – como se isso fosse a solução para a desigualdade congênita do nosso modo de reprodução social. Parasita é uma verdadeira pedra no caminho, Bacurau é um m&m.