Sobre caprichos e monstros

Esse texto gostaria de conter sérias impressões políticas do cenário atual criptografadas em forma de análise artística e performance musical. Gostaria que tudo isso fosse um capricho em si, inspirado na gravura e no texto de Francisco de Goya, para retratar o governo e o espírito do mundo atual como um monstro caprichado, composto de inúmeras máscaras, onde aparentemente ninguém se conhece e isso mesmo como sendo ápice da razão instituída.

“O mundo é uma máscara, o rosto, o traje, a voz tudo é fingido; todos querem aparentar o que não são, todos se enganam e ninguém se conhece”. O manuscrito que comenta e batiza a gravura numerada como capricho 6 é do próprio Goya. Crítico da sociedade espanhola e bastante próximo do movimento iluminista, o pintor compara a um baile de máscaras ou a uma cena carnavalesca não só aquela sociedade, mas o mundo todo e a própria razão sobre a qual está assentado. “O sonho da razão produz monstros” é o título de outro capricho, o 43. A série total conta com 80 gravuras, feitas no final do século XVIII, após uma grave crise de saúde que acometeu Goya.

A definição que Rousseau (geralmente encarregado das entradas sobre música) nos oferece na Enciclopédia organizada por Diderot e D’Alembert capta o essencial do caprice: forma livre que se mostra justamente no não assujeitamento da composição. Equivale à fantasia. O projeto de Goya inicialmente não se chamava Caprichos, mas Sonhos. O sonho quase sempre apresenta um material considerado real que vai sendo deformado de modo fantástico. Não por acaso, a série de gravuras (cuja ordem teria sido embaralhada por Goya) oscila entre o propósito crítico moralista tipicamente iluminista, o qual podemos sentir em “Nadie se conoce”, e uma inevitável tendência monstruosa que transforma homens em criaturas bizarras e animalescas – o que prenuncia as Pinturas Negras com que Goya decorará sua casa, mas também ostenta todo um lado satírico e humorístico.

Portanto, o capricho e o estilo correspondente, capriccioso, revelam singularidades que a despeito de uma norma – musical, pictórica, literária – insistem em aparecer. Mais do que isso, eles indicam uma linha de fuga, de deriva ou de devir que desmascara a própria normatividade. Como se a ordem da razão tivesse por fundamento que afinal todos se enganem e ninguém realmente se conheça, o que apenas fica mais claro quando ela adormece. Em suma, ela é muito mais “cinzenta” do que parece. As gravuras são todas em preto e branco e isso é uma escolha deliberada e não só técnica. Nesse registro, a luz divide a importância com a sombra. Na ausência de cores, Goya começa a comentar seus trabalhos em textos propositalmente ambíguos: não se sabe bem se fala o moralista, o parodista, o niilista ou todos juntos.

Mario Castelnuovo-Tedesco foi um músico judeu-florentino (1895-1968), emigrado da Itália facista para os EUA, onde se tornou célebre compositor para a música cinematográfica e professor de nomes como Jerry Goldsmith e John Williams. Sua carreira de músico fora desse âmbito já era bastante reconhecida. Aqui considero sua obra essencialmente capricciosa e isso não poderia ser mais emblemático do que nesta série para violão que se inspira em 24 gravuras. A composição de Tedesco quase sempre é marcada por uma forma aparentemente soberana (chamada pelos críticos de neoclássica) que é regularmente quebrada por um capricho da ordem do lírico, isto é, do melódico, vocálico (o que nele é identificado como “romântico”), com sua respectiva autonomia. A condução desse duelo é rítmica. Neste capricho, que na série de Tedesco recebeu o número 3, vozes virtuosísticas quase em contraponto vão sempre sendo “enquadradas” ou “arrazoadas” até fugirem em sonho novamente da restrição formal, para depois serem de novo capturadas. Esse jogo sem fim tem uma “resolução” cômica ao final: após um acorde de flagrante resignação, suspiro (uma espécie de “não adianta lutar…”), uma voz sobressalente vai se infiltrando docemente de novo até se agravar e terminar imitando a si mesma de forma provocativa. A resposta? Quatro pancadas na cabeça pra deixar de ser chata!

O jogo entre sonho da melodia e razão da forma é o próprio jogo de máscaras.

Se for lícito conjeturar que a partir de certo momento da sua vida Goya interpretou esse jogo de maneira cada vez mais sombria, cujo humor e ironia não esconderiam a decepção e o ressentimento com o projeto iluminista, quase um pré-schopenhaueriano, Tedesco interpreta esse jogo como uma inesgotável fonte de criação, quase um pós-nietzschiano. Onde o pintor enxerga “apenas” branco, preto e sombras, o músico esbanja uma aquarela quase infinita de motivos musicais. Mas se importa um sentido atual, precisamos tanto da mordaz crítica de Goya, quanto da potência transfiguradora de Tedesco, porque a potência desfiguradora é o mesmo Goya quem nos mostra. A transgressão da norma/forma que o estilo do capricho maneja é ambivalente: pode produzir monstros peculiares cujos pedaços se contradizem flagrantemente ou composições de malhas flexíveis em que as singularidades não rasgam, mas entretecem. Ao invés de “ninguém se conhece”, a música de Tedesco promove uma constante familiarização. Enquanto lançava uma visão aguda sobre a crise da razão no final do século XVIII, em meio à crise de sua própria saúde, alguma coisa afastou o pintor de vozes mais alegres e confiantes. Sua surdez, mais um capricho.

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