Castelo, personagem de Lima Barreto, era um malandro comediante da vida que chegou a alcançar o posto de cônsul porque sustentou habilmente a grande mentira de ser um professor de javanês versado na língua e na cultura dos povos malaios. O auge do farsante teria sido a participação num congresso internacional de linguística.
Lima Barreto nos poupou do macarrônico pronunciamento que Castelo teria feito em tal congresso. Mas quem quiser ter um gostinho do que teria sido, basta ler ou ver o discurso de posse do Ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araujo.
Ao invés de javanês, Araujo ostenta profundo conhecimento etimológico de latim e grego, cuspindo várias palavras, tais como aletheia (desesquecimento ou lembrança, traduzido como “verdade”), gnosis (conhecimento) e eleutheria (liberdade). Mas ele não faz nenhuma questão de ocultar o viés religioso com que toma esses termos, citando inescrupulosamente o evangelho de João (também cooptado por Bolsonaro): “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”. De cara, a aproximação neoplatonica que o cristianismo fez da aletheia grega e a noção de verdade é coisa bem mais complexa do que o ministro acha. E isso não significa que ele simplificou as coisas, ele confundiu medonhamente as coisas. Certo sentido religioso (grego! e não simplesmente cristão) de aletheia deveria se relacionar com a ideia da reminiscência e da transmigração (reencarnação) da religião órfica, coisa que naturalmente está fora da “doutrina” cristã de fundo. A mesma coisa com o gnosticismo. A mesma coisa com a liberdade – misturar a liberdade grega com a liberdade cristã é realmente puxado. E para remendar esse trapo todo, o cara me apela para Renato Russo: o conhecimento da verdade não é um processo racional, mas uma revelação que se atinge pelo amor… Diante disso, russo e judeu se juntariam para dizer: “Perdoai-lhe, ele não sabe o que diz”. Mas o pior é que sabe… Para além das toscas confusões que o reduziriam a um idiota fundamentalista cristão, marcando posições aparentemente moralistas ao falar de uma “teofobia” generalizada no mundo, ao condenar o aborto e comparar a repartição pública com um santuário, a plataforma exterior (e interior) do ministério é agora francamente pagã. O que denuncia que é articulada por outros interesses.
Voltando ao cônsul especialista em javanês. No aludido Congresso, o presidente teria lhe designado por engano à seção do tupi-guarani.
E Araujo ficaria para trás? Além de latim e grego, também embromou uma Ave-Maria em Tupi do Padre Antônio Vieira! E aqui a fronteira entre burrice e maldade fica muito tênue. Como um escolado no Instituto Rio Branco me confunde a saudação tupi “anauê” com “anuê”? Não porque ele devesse entender de tupi! Mas porque essa saudação foi apropriada pelo movimento integralista brasileiro, de inspiração fascista, dos anos 30 e 40: seus adeptos estendiam o braço como os nazistas para gritá-la! Araujo inclusive termina o discurso com a expressão como fosse um “grito de guerra”. Alguém que aparentemente deveria zelar pela diplomacia…
A guerra é declarada não só contra os “infiéis”, mas também contra o chamado “globalismo” (ora equiparado ao socialismo, ora a uma “ordem global liberal”) que seria inimigo do amor ao lar (em grego, oikos) e a pátria. O Brasil deveria abandonar uma agenda pautada por valores externos e relembrar a verdade (aletheia) de si mesmo. Mas num dos primeiros momentos ufanistas, Araujo cita “o amor, a coragem e a fé” dos… COLONIZADORES!? Indo direto ao ponto: além de pagã, a plataforma exterior e interior é fortemente colonialista no sentido mais predatório do termo. Assim como Paulo soube filosofar a doutrina cristã para os gregos e os colonizou; assim como os jesuítas souberam tupinizar; agora é hora de “brazilizar” essa doutrina. E é evidente que o menos importante é uma doutrina. Ela será torcida e retorcida quantas vezes for necessário. O que importa é colonizar. O globalismo é apenas uma cortina de fumaça para despistar o movimento da globalização. Não é um conceito antagônico, como dizem, mas quase uma premissa da globalização.
Ou não é revelador que o ministro defensor da soberania assista Netflix? Não vi a série que ele recomenda, Ministerio del Tiempo. Mas as semelhanças com o Ministério da Verdade do romance 1984 são bem fortes. É um setor do governo que controla as influências no presente de noticias e fatos do passado simplesmente fakeando a história para a manutenção do seu poder. Segundo Araujo, “o Itamaraty, em certo sentido, não é somente um Ministério das Relações Exteriores, é também um Ministério do Tempo”.
Em seu discurso, o homem que sabia javanês deu várias outras provas claras de seu conhecimento citando Proust, Lispector, Pessoa, Cervantes, Ésquilo e até Raul Seixas! Quisera isso tudo fosse um “Plunct, Plact, Zum! Não vai a lugar nenhum!”. Mas Araujo está mais para uma “metamorfose ambulante” da espécie mais perigosa.