Sobre bIrdman, the unexpected vIrtue of Ignorance

A perspectiva tragicômica é a própria ideia do teatro. Os personagens estão investidos tragicamente em seus papéis, mas vistos de fora são apenas marionetes desse papel. E o teatro, na modernidade, não traduz a própria vida? “Life is a tragedy when seen in close-up, but a comedy in long-shot”, diz Chaplin.

Assim, se nos transpomos para o drama psíquico pessoal de Riggan, tudo é trágico e sério, mas olhando de fora a coisa é uma comédia de ponta a ponta. No jargão filosófico, vida é contradição e a primeira cena do filme já expõe isso: num momento de espiritualidade profunda em que Riggan medita e levita, ele está de cueca, com a postura torta e a voz de seu superego dizendo que o lugar cheira a testículos. Esse próprio superego é uma trágica pressão para Riggan e de fora uma coisa ridícula: um pombo mimado que até aparece cagando no final… Um dos nomes para esse estilo de arte pode ser “humor negro” (Andre Breton), mas prefiro os nomes mais contemporâneos sickcom ou sadcom, pois evidenciam mais a contradição.

Birdman (2015, Alejandro Iñarritu) é um filme especial para se pensar a contradição na vida porque ele é feito de personagens contraditórios e isso indica outra percepção da modernidade patente desde o Iluminismo, pelo menos, notável na crítica da razão de Kant, no “eu cindido” de Kierkegaard e na posterior abordagem psicanalítica (tome-se “O Eu e o Id” freudiano), a percepção de que o “Eu” é contraditório. No modelo edipiano, a psique é formada a partir da contradição, do conflito com o pai, que engendra um super-eu por identificação com a figura repressora, um eu que concentra o investimento libidinal e um Id que funciona como despressurizador do conflito na forma do recalque. Essa economia que constitui uma pessoa é toda contraditória e está longe de funcionar sem problemas. Birdman nos mostra três personagens centrais e seus modos problemáticos de funcionamento da psique numa escala histórica simbolizada por três gerações: Riggan, o ator mais velho e experiente; Mike, um ator um pouco mais jovem, no seu auge; Sam, a filha de Riggan, a mais jovem. Os modos são respectivamente: o neurótico, o perverso e, na falta de rótulos, o “pós-moderno” (indiferente, talvez). Cada um experimenta a “crise narcísica” moderna de uma forma, segundo um tempo histórico diferente, e que têm implicações diretas na evolução do modo de vida capitalista ao longo do século XX – o que já fica demais para abordar agora. Se o modelo adequado de funcionamento (talvez isso nunca exista) da psique possa representar o comportamento virtuoso, os modos problemáticos, a neurose, a perversão e o que chamo de “indiferença” talvez gerem quadros viciosos. E de novo: que existam problemas num mecanismo altamente contraditório é mais que esperado. A “solução” (a recuperação da virtude) talvez seja um meio-termo, ou o conselho de Dédalo a Ícaro (mito usado no filme): não voar muito alto, nem muito baixo. E não sei se a imagem bastante irônica e “idiota” de Sam, que considero a indiferente, represente essa solução ou virtude. A visão extasiada dela que encerra o filme não lhe faz propriamente uma redenção, me parece mais um deslumbre meio tolo.

Riggan é um “viciado” no seu alterego que clama por reconhecimento, sucesso, mas é sempre um insatisfeito. O superego é sempre aquilo que automaticamente coloca o ego numa posição de culpa, dívida eterna. Para usar as explicações de Deleuze, o superego é uma instância sádica. O ápice desse “ideal do eu” é simbolizado pelos superpoderes de Riggan. E é justamente voando, exercendo um dos seus poderes mais fantásticos que Riggan encontra a saída suicida da sua neurose, a morte e suma-realização de seu superego. Talvez a tendência suicida de Riggan acene para o masoquismo próprio do sadismo, como Deleuze gostava de determinar. (quando conta da sua primeira tentativa suicida, Riggan diz que começou a andar em direção ao mar e parecia que ele ia dizer que caminhava sobre as águas, como se mais uma vez experimentasse um grande poder…)

Mike Shiner (o “brilhador”) é um viciado na realidade, mas isso demanda explicações. Ele é um viciado na realidade contanto que ela seja uma encenação, um teatro. Ele diz que só finge fora do palco. Quando brinca de “thruth or dare” ele sempre pede a “verdade”. A verdade é seu fetiche e o fetiche, segundo Deleuze, é uma perversão do ego. Porque é o teatro, ele tem a chance de performar sua verdade egoísta. Ele sabe que fora do palco ele tem um superego social lhe enchendo o saco e pensa: já que a vida é um esconderijo da verdade, isto é, é uma mentira disfarçada, eu vou performar minha verdade disfarçada de mentira. Assim ele frustra o controle do superego, mas não sem frustrar a si mesmo porque na “vida real” ele é um castrado, um brocha, e sua própria verdade não passa de encenação. Shiner é um masoquista porque a própria repressão que lhe condena a ser falso na vida real lhe proporciona ser verdadeiro e gozar seu ego na farsa teatral. Ele só não pode sair ileso disso: a repressão realmente lhe atinge, ele é batido. Riggan lhe bate não só no palco várias vezes, como também fora do palco. O fetichismo de Mike é notório pois ele é mais jovem e mais forte que o velho Riggan, mas aceita a surra; mais: ele quer uma arma de verdade no palco, uma ameaça real…

Sam, a filha de Riggan é uma ex-viciada em drogas e aparentemente uma viciada em redes sociais. Ela sempre pede consequências. O seu vício na rede social tal como na droga está apoiado na experiência transcendente: na droga, a vivência de uma realidade alterada ou expandida; na rede social a transcendência simbolizada pela viralização nas milhares de visualizações. A própria morte não é uma barreira se resulta na consequência transcendente: assim ela gerencia virtualmente a rede social de seu pai, viralizando o vídeo dele seminu, postando uma foto do seu rosto arrebentado e chegando numa verdadeira epifania com o suicídio dele no final, sabendo que causará um frenesi nas redes sociais. Por isso, sua visão extasiada final está mais para aquele efeito retardado (dummy, duffie) da droga do que para um “happy ending”. Sam está alheia e imune aos conflitos existenciais de Riggan e Mike epor isso ela talvez pudesse encarnar uma solução narcísica como nova virtude. Mas essa virtude não é menos problemática e contraditória: ela é a ignorância (indiferença, idiotia, alienação). Seu ego está a salvo suspenso na virtualidade. Ela até aparenta uma virtuosa humildade ao relembrar Riggan da insignificância do ser humano; o problema é que ela assume radicalmente essa insignificância, esse não valor. Curiosamente na primeira aparição, Sam não fala por si própria…

A morte (Sam também flerta com a ideia de se jogar) parece uma fronteira bem familiar aos três modos de funcionamento da psique comentados, modos que se inscrevem numa “crise narcísica” tipicamente moderna e pós-moderna. É curioso que o tema da morte esteja contraditoriamente confrontado com o conto que Riggan adaptou para o teatro, “What we talk about when we talk about Love”, de Raymond Carver. Esse pequeno conto é em si bastante tenso e não tem um final resolutivo. Em linhas gerais, ele compara duas concepções de amor: um amor que pode ser violento e mortal, e um amor mais puro e ideal. Mas o próprio defensor da ideia de um amor puro não consegue concluir o que ele é, pois sua mulher entende que existe um amor violento e ele, por sua vez, não está muito confortável com o fato de que amou suas mulheres de antes e que se seu amor atual acabasse fatalmente outro surgiria. Em outras palavras, o amor pode ser trágico ao limite, e ao mesmo tempo cômico. No início do filme, outro texto de Carver é inserido, trecho de um poema que curiosamente está na sua lápide: “And did you get what you wanted from this life even so? I did. And what did you want? To call myself beloved, to feel myself beloved on the earth”. Isso insere os conflitos narcísicos num contexto menos analítico talvez e mais humano, o desejo de amor, nem por isso menos contraditório.

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